RPCD, vol. 6, nr. 2 : Maio-Agosto/May-August 2006
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capa deste número da revistaNota Editorial
Diário de bordo - Ventos alísios

VIAGEM

Aparelhei o barco da ilusão
E forcei a fé do marinheiro
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida que temos;
E é nela que é preciso
Procurar o velho paraíso
Que perdemos.)
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida, a revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

1. Preocupam-me os excessos do futebol. Tal como as claques que se assemelham a hordas de selvagens, sem cultura e sem alma, por dentro vazios de princípios e valores, mas cheios de instintos bárbaros e primários. Assusta-me que haja gente que esgota a vida a brigar por uma equipa. E que se entrega ao futebol a ponto de se esquecer da sua vida, de outra vida, com outro sentido e elevação.

Sim, essa forma de extremismo e fanatismo religioso dá que pensar e temer. Mas assusta-me muito mais a comissão liquidatária da alma lusitana - escarolada, limpa, laboriosa, íntegra, proba, séria e honrada – que se instalou entre nós. As marcas nobres dessa alma, os traços essenciais e ancestrais que a perfazem e exaltam estão a ser abatidos e entregues ao desbarato pelo despudor neoliberal.

O pensamento filosófico, na antiguidade como no presente, viu e vê na ilusão o alimento preferido da felicidade. Tudo quanto seja fonte multiplicadora de encantamento e ilusão leva a modalidades superiores de configuração da vida e portanto abeira da felicidade ou, no mínimo, oferece momentos e oportunidades de concretização desta utopia. Não podemos, pois, deixar de ver o desporto em geral e o futebol em particular como um campo de sementeira fértil de ilusões e, por via destas, de vivência de situações únicas e renováveis de felicidade. Ora é isto mesmo que o Mundial de Futebol constitui para tantas pessoas em todos os recantos do globo, para mim e milhões de portugueses. O apego ao futebol traduz descrença no resto. É a única tábua de salvação à vista de um povo à deriva. Por isso também tenho medo dos tempos seguintes à conclusão do certame. O vazio promete alastrar. Aonde iremos buscar a ilusão que sustenta a vida?

2. A hora é estranha. É como se a mortalidade flutuasse no ar e vivêssemos um intervalo, num lugar que não mais nos reconhece. Como se a sabedoria, a decência e lucidez voassem pela janela, à medida que a crise se adensa. Todavia no fundo do nosso íntimo vive a convicção de que o homem volta sempre às suas próprias necessidades de beleza, verdade e discernimento. Mais, acredito que na escrita, no ensino e aprendizagem da vida só perdura aquilo que obedece a três critérios: esplendor ético e estético, força intelectual, sapiência.

Mas é uma crença desmentida pela conjuntura. Este é o tempo de Dom Quixote: de beirar a transcendência e simultaneamente de sucumbir à desilusão, como se apenas houvéssemos de alcançar a apoteose no silêncio tranquilo e amargo do aniquilamento e resignação. Aceitemos, pois, os limites das possibilidades, sem esquecer as palavras de Hilel: “Onde não houver homens, esforçai-vos para agir como um homem”. E tendo também em conta a advertência de Tarphon: “Não sois obrigados a concluir a obra, mas tampouco estais livres para desistir dela”.1

Mantenhamos vivas as convicções ganhas num trajecto esforçado, suado e limpo. E continuemos a iluminar as noites e dias da dúvida opressora com este clarão de Mário Quintana: “A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa”. Para os guardar e cumprir.

Sei que eles caíram em desuso. Porém é mister que sigamos o rumo traçado, para não cairmos na farsa e mentira. Os enganadores têm o castigo de ser o que são; não são nada, falta-lhes identidade. Eis porque devemos passar de cara erguida, leves e orgulhosos de nós, por entre a multidão desfigurada.

Sim, devemos preferir a dificuldade dorida do dever porfiado à vantagem indevida do dever contornado. Até porque o homem que a dor não educou não passa de uma criança. A dor torna-nos mais fortes e por certo mais sábios, cépticos e prudentes, embora também pessimistas e solitários.

3. Quando olho a conjuntura e as circunstâncias, vem-me à memória o poeta russo Maiakowski. O poeta acreditava piamente na revolução e que dela sairia um mundo melhor, mais justo, fraterno e solidário. Pouco a pouco foi percebendo que os líderes do seu país tinham perdido a alma. O desrespeito e os atropelos brutais à dignidade física e moral das criaturas eram a regra vigente. Desiludido e sem esperança, em 1930 rendeu-se e saiu de cena, pondo um fim trágico à sua vida.

Também hoje vivemos tempos dúbios e tristes. Muitos de nós já sentem angústias e desalentos próximos aos do poeta. Perdemos a confiança em gente que se afirmava ciosa do bem comum, apostada em combater iniquidades e diminuir as desigualdades sociais. Tudo o que traduz solidariedade, atenção e respeito do outro, do semelhante, é destruído sem apelo nem agravo. O doente, o necessitado e o desvalido são erigidos em privilegiados e como tal vilipendiados e execrados na praça pública. Por isso vai alastrando uma onda de suspeição, descrédito e desesperança, em relação aos políticos e ao seu jeito tão baixo de fazer política. Contudo ela não gera revolta; pelo contrário, redunda em passividade e desistência, o que é deveras preocupante.

Só que eu sou professor, pertenço à profissão da palavra e da obrigação de a dizer alto. Não procederei como Maiakowski, nem tampouco fico calado, à espera que me tirem a voz da garganta e já não possa falar.

Não deixemos que o silêncio dos melhores seja cúmplice do alarido e desvergonha dos piores! Não percamos a alma, nem permitamos que nos roubem o direito de sonhar, a vontade de viver melhor!

Sim, é tudo isto que causa dor em mim e em muitos portugueses. Não foi tão presente enquanto a nossa Selecção esteve no Mundial. Depois veio o pesadelo a toldar a nossa visão sobre um horizonte onde já não se descortina a ilusão. Da terra emerge uma cruz com um epitáfio: “Aqui jaz a alma portuguesa. Vendida e perdida por…” Recuso-me a continuar a ler, porque é longa a lista dos que a vendem e perdem.

4. Somos poucos e sem peso económico, mediático e comercial, mas fomos longe no Mundial de Futebol. Na Europa não há admiração pelos feitos desmedidos da nossa história, mas na Alemanha sentiu-se o vento lusitano. Esse sopro universal que insufla a inquietação de Portugal, tão bem dito por Miguel Torga, que é o de não ter medo senão da pequenez, “medo de ficar aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura”.2

O papel que nos tocou desempenhar na história da Humanidade ri-se da soberba europeia. A via-sacra da nossa aventura ingente deixou-nos na pele uma nova tatuagem e o sudário de uma condição desgarrada; transformou-nos em arlequins de roupa multicolorida. Somos híbridos, mestiços, polimorfos, ubíquos, divididos e perdidos na lonjura e na distância. Uma colcha de retalhos e estilhaços, a revelar a unidade da espécie humana. Antes tínhamos só as marcas do agro originário; hoje temos traços de outras culturas, somos também africanos, asiáticos, angolanos, brasileiros, cabo-verdeanos, goeses, guineenses, macaenses, moçambicanos, timorenses etc. Temos a pátria aumentada e gememos por todas as suas parcelas no desespero duma opção impossível. Somos duplos? É claro que não somos duplos, somos isso sim um ser por inteiro, mais humano, mais solidário, mais comunitário. Somos sim um sujeito mais universal, um cidadão global e planetário. Como um Cristo de amplos braços. A isso chama-se ser português.

No decurso da nossa peregrinação e errância houve desencontros com os povos que connosco se cruzaram. Mas também houve encontros, aproximações, paixões, amores e sexo insubmissos a pudores da epiderme e a arrogâncias biológicas, redundando em casamentos que misturaram o sangue e geraram laços e afectos. Por isso somos Sísifos com as pernas escanchadas sobre o oceano, apostados em secá-lo e unir as suas margens.

Estava em Cabo Verde quando Portugal jogou com Angola. Alegrei-me com a vitória, mas não entrei em excesso de festa e euforia. Talvez os angolanos precisassem mais do que nós de ganhar para porem uma pincelada de alegria em cima da espessa camada de agrura e incerteza que cobre o seu dia-a-dia. Para Angola vai, pois, uma saudação de estima e apreço pelo feito realizado, tal como a minha profunda sintonia com o entusiasmo que varreu o povo angolano.

Em Cabo Verde senti a identificação com Portugal. Ela mantém-se viva, apesar das vicissitudes da política e do poderoso cortejo de interesses económicos que tudo fazem para destruir laços antigos e, em seu lugar, colocar outros mais superficiais e surdos à voz dos afectos. A nossa Selecção também é a de muitos cabo-verdeanos, mas o Brasil também conquista cada vez mais corações naquelas paragens. Este facto dá-me satisfação, por ser prova insofismável de que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa tem raízes fundas no sentir dos povos que a perfazem. Ela é uma realidade bem mais sólida e visível nas atitudes das pessoas do que no cenário político.

Igualmente de Goa, do Brasil, Timor e outras bandas recebi testemunhos da intensa comunhão lusófona e do apoio activo às selecções do nosso idioma. Foram deveras comoventes os telefonemas que chegaram de Goa, de Manaus, de Porto Alegre, de São Luís do Maranhão, de São Paulo e do Rio de Janeiro, a transmitir a corrente de solidariedade, quer no início, quer após os jogos. Nos locais mais recônditos do globo havia bandeiras do Brasil e de Portugal a ondular ao vento do amor, da veneração e admiração. E erguia-se no ar a chama resplandecente da alma lusófona, grávida e acrescida de sonho e futuridade.

O nosso lugar certo e natural é portanto na imensidão lusófona. É nela que podemos encontrar arrimo e lamber as feridas provocadas pelas mordeduras dos canzarrões que defecam no Mundo. Por isso mesmo é que me dói ver responsáveis políticos, inclusive na área desportiva, exibirem um ar de riso desdenhoso quando se fala na lusofonia e na sua comunidade. A cara dessa gente não engana; a sua alma tem os ferros das ganadarias dos mares do norte. Viva o Portugal multicolorido! Viva a pátria lusófona!

5. Como disse atrás, estive recentemente no meio do Oceano Atlântico, em Cabo Verde. Ao contemplar aquelas ilhas e o esforço titânico das suas gentes para dobrarem o destino e a rudeza das circunstâncias, dei-me conta de que não podemos ser todos iguais; a dimensão telúrica do local do nascimento condiciona o ser e a obra das criaturas. A grandeza da alma e da autenticidade e ternura humanas que se derramam na sua face. Realmente a gente de Cabo Verde é incomparável no tamanho e limpidez da alma e do coração, dos sonhos, do afecto e generosidade, da alegria de dar, de ser fraterna e de se sentir lusófona. Aberta ao mistério, à fé e ao milagre da vida, faz brotar das cinzas e fragas vulcânicas as plantas, flores e frutos que incendeiam de riso, harmonia e festa o cântico sofrido e magoado da existência. Na falta de água, rega a seca e o chão com lágrimas de saudade e emoção.

Isto leva-me a considerar irrelevantes as razões e o teor deste texto. Talvez o devesse deitar fora e escrever de novo. Eis uma sugestão para algo mais lato e abrangente: para recomeçar o texto da vida e reinventar as margens que o seu curso deve seguir. Afinal a vida é uma viagem; é nesta que a aprendizagem acontece e a pessoa amadurece. O saber vem-nos do sabor que a viagem oferece. Estamos e somos em trânsito, num mar salgado e fundo de vivo encantamento e ácida desilusão.

Cabo Verde e o exemplo, a música, a fé, a persistência e a diáspora das suas gentes vão comigo até ao fim da viagem, envoltos na toalha da memória doce e da sentida gratidão. Bem hajam!

1 BLOOM, Harold (2004): Onde Encontrar a Sabedoria?
Editora Objetiva Ltda., Rio de Janeiro.
2 TORGA, Miguel (2002): Ensaios e Discursos.
Círculo de Leitores.

Jorge Bento

Artigos de Investigação
[Research Papers]

Alterações imunológicas e antropométricas induzidas por uma ultramaratona em Kayak. Um estudo de caso
Immunological and antropometric changes induced by an ultramarathon in kayak. A case study
J.A. Rodrigues dos Santos, J. Candeias, M.C. Magalhães

Comparação entre a intensidade do esforço realizada por jovens futebolistas no primeiro e no segundo tempo do jogo de Futebol
Comparison between the effort intensity of young soccer players in the first and second halves of the soccer game
Lucas Mortimer, Luciano Condessa, Vinícius Rodrigues, Daniel Coelho, Danusa Soares, Emerson Silami-Garcia

Exercício contínuo e intermitente: Efeitos do treinamento e do destreinamento sobre o peso corporal e o metabolismo muscular de ratos obesos
Continuous and intermittent exercise: Effects of training and detraining on body weight and muscle metabolism in obese rats
Larissa Braga, Maria Mello, Fúlvia Manchado, Claudio Gobatto

Exercício rosca bíceps: influência do tempo de execução e da intensidade da carga na atividade eletromiográfica de músculos lombares
Biceps curl exercise: endurance time and load level effects in the electromyographic activity of lumbar muscles
Anderson Oliveira, Mauro Gonçalves, Adalgiso Cardozo, Fernando Barbosa

Efeito do número de demonstrações na aquisição de uma habilidade motora: um estudo exploratório
Effect of the number of demonstrations on a motor skill learning: An exploratory study
Alessandro Bruzi, Leandro Palhares, João Fialho, Rodolfo Benda, Herbert Ugrinowitsch

Análise da assimetria nos padrões fundamentais arremessar e chutar em crianças
Asymmetry analysis of overarm throwing and kicking motor patterns in children
Ilca Santos, Guilherme Lage, Adriana Calvacante, Herbert Ugrinowitsch, Rodolfo Benda

A competência percebida pelos alunos, as expectativas do professor e o desempenho académico: como se relacionam na disciplina de educação física?
Pupil's self-perceived competence, teacher expectations, and academic performance: How do they relate in Physical Education?

José Henrique, Carlos Januário

As associações desportivas em Porto Alegre, Brasil: espaço de representação da identidade cultural teuto-brasileira
The sport associations in Porto Alegre, Brazil: space for representation of the German-Brazilian cultural identity
Janice Mazo, Adroaldo Gaya

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[Reviews]

Glicocorticóides e síndrome metabólica: aspectos favoráveis do exercício físico nesta patofisiologia
Metabolic Syndrome and Glucocorticoid: Favorable aspects of physical exercise on this pathophysiology
J. Rodrigo Pauli, Luciana Souza, Gustavo Rogatto, Ricardo Gomes, Eliete Luciano

Compreendendo o overtraining no desporto: da definição ao tratamento
Understanding overtraining in sports: from definition to treatment
Adelino S. R. Silva, Vanessa Santhiago, Cláudio A. Gobatto

Ensaio
[Essay]

Não se deve identificar força explosiva com potência muscular, ainda que existam algumas relações entre ambas
One should not compare explosive strength and muscular power even if some connection can be found between both abilities
Carlos Carvalho, Alberto Carvalho

Pedagogia da viagem. Arlequim, Mestiço, Híbrido, uma colcha de retalhos
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