Nota Editorial
Da falácia da 'actividade
física'
1. As presentes considerações
surgem como reacção a um refinado ataque ao desporto,
perpetrado por quem tem com ele uma relação ditada
por reservas, equívocos, complexos e preconceitos mentais,
casados em comunhão de bens com uma confrangedora indigência
cultural e filosófica. O dito ataque está a acontecer
em duas frentes: no plano da lei e nas orientações
perfilhadas por algumas entidades académicas. Numa e noutra
frente confluem correntes de proveniências diversas, umas
ingénuas e confusas e outras bem espertas e oportunistas,
contribuindo todas elas para alimentar e aumentar a onda neoliberal
(revestida do verniz de um hipócrita e falso humanismo) e
a sua pretensão de neutralidade ideológica e axiológica,
de negar e retirar ao desporto dimensões constituintes do
seu património e legado de princípios e valores.
No primeiro caso trata-se da designação
da nova Lei de Bases que visa regular o sector em Portugal. Ela
introduziu e chamou a primeiro plano a expressão ‘actividade
física’, desconsiderando e relegando o desporto para
um lugar secundário. 1
No segundo caso trata-se da proliferação
da tendência – oriunda do espaço americano e
com ramificações noutros quadrantes - de promover
igualmente a ‘actividade física’ a categoria
e referência centrais, não apenas no tocante à
criação de cursos de pós-graduação,
como também no estabelecimento e desenvolvimento de programas
de acção e de linhas de pesquisa.
É contra esta tentativa de aplicar
um garrote em torno do desporto que urge desencadear um movimento
que faça frente aos equívocos e traga à colação
a extraordinária valia da actividade desportiva. Eis uma
responsabilidade e uma obrigação indeclináveis
para todos quantos amam o desporto, entendem e apreciam a sua incumbência
cultural ao serviço do processo de civilização
dos humanos e da respectiva sociedade.
2. O pretexto para
este renovado ataque ao desporto é fornecido pelos dados
de numerosos estudos, bem como pelas preocupações
da OMS - Organização Mundial de Saúde. Ambos
apontam a inactividade física e a obesidade como as duas
grandes ameaças à saúde pública no século
XXI. A partir daí a ‘actividade física’,
sem clarificar o seu tipo e a sua forma, é erigida em panaceia
para combater a doença e para garantir a saúde; ela
passa a ser recomendada e receitada para a generalidade da população,
enquanto o desporto é reduzido à sua versão
profissional e comercial e perspectivado como prática de
uma elite, com toda a aversão, condenação e
rejeição que isto suscita.
Conhece-se bem o zelo fervoroso e ideológico
que anima, em regra, os arautos da dicotomia ‘povo - elite’.
Assim a ‘actividade física’ é a actividade
que deve ser postulada e consumida por ser saudável, sã,
genuína e depurada dos excessos do desporto. Este deve consequentemente
ser abandonado, por ter em cima de si os desvios, estigmas e opróbrios
que cobrem, aos olhos dos populistas, todos quantos não se
conformam à norma por baixo, à pequenez e insignificância,
ao apoucamento e à mediania e gostam de triunfar e vencer,
de almejar a superação e a excelência.
Mais, para os apologistas da ‘actividade
física’ e para que se consiga o efeito ‘saúde’
basta que o indivíduo ande, se mexa e agite, que consuma
minutos e calorias, que diga letras e sílabas, sem necessidade
de compor palavras e frases e, muito menos, textos com sentido e
significado; basta-lhe ser instintivo, natural e primitivo, não
sendo necessário que melhore o seu vocabulário e reportório
motores, que aprenda e aprimore gestos e actos codificados, com
técnica e estética, que atinja competência desportiva,
que tenha um corpo ágil e hábil, culto e civilizado,
que desenvolva relações com os outros e com eles construa
o seu auto-conceito e a sua auto-estima.
A falácia vai mais longe: para
ter saúde e ser ‘activo’ o indivíduo não
carece de enfrentar os ‘horrores’ e incómodos,
a ‘opressão’ e obrigações da competição
desportiva, de suportar os odores e olhares, as fintas, forças
e resistências, a superioridade e humilhações
infligidas pelos adversários; nem precisa de ouvir e aceitar
os conselhos e reparos, as críticas e recriminações
dos colegas. Não, esse fardo é dispensável,
chega um qualquer empenho muscular e dispêndio energético.
Como se vê, o conceito pluridimensional de ‘saúde”
conta pouco, sendo mesmo atirado para debaixo do tapete!
Há outras ‘razões’
de fundo que servem de fonte de inspiração para os
conselheiros da ‘actividade física’. O desmesurado
enaltecimento da recreação e lazer e a insana desvalorização
do trabalho – tão em voga nos dias de hoje em muitos
quadrantes intelectuais - conjugam-se também para encomendar
o funeral apressado do desporto. Eis aqui uma outra faceta do delírio
mental! E porquê? Porque é no desporto que mais refulgem
princípios caros ao trabalho (rigor, seriedade, empenho,
afinco, exigências, objectivos, regras, disciplina, compromissos
etc.), sem que isso leve à anulação ou subjugação
dos valores e dimensões associadas ao lúdico e prazeroso.
Pelo contrário, o desporto é a demonstração
exuberante e cabal do quanto é possível humanizar
e sublimar o labor esforçado e suado, por constituir uma
síntese extraordinária e ímpar de coisas que
apenas são opostas e contraditórias na aparência,
nomeadamente trabalho e jogo, dor e felicidade, exigência
e diversão, obrigação e liberdade, natureza
e cultura, ter e ser etc.
Em suma, no modismo e americanismo
da ‘actividade física’ escondem-se, embora deixem
um grosso, reluzente e comprido rabo de fora, tanto o apelo ao regresso
à ‘pureza’ original e selvagem como a recusa
do progresso, da cultura, da tecnologia e da civilização.
Rousseau, se fosse vivo, por certo não faria melhor!
3. A defesa do desporto
não é, pois, ditada por uma oposição
ou questão de natureza linguística; nem, muito menos,
por uma embirração ou preferência terminológica.
Trata-se, sim, de uma importante diferença conceptual e esta,
por sua vez, contém em si essenciais diferenças filosóficas
e ideológicas, que não podem ser ignoradas e escamoteadas.
Não, não é ingénuo ou indiferente que
a LBAFD (Lei de Bases) introduza na sua designação
a ‘actividade física’ e que coloque esta à
frente do desporto.
Ademais a utilização,
no contexto aqui em apreço, da expressão ‘actividade
física’ é absolutamente estapafúrdia.
É provável que com ela se queira enfatizar a relação
das formas básicas da exercitação desportiva
com a saúde, assim como chamar a atenção para
outra maneira, diferente da tradicional, de olhar o desporto; porém
isso não autoriza semelhante aberração. ‘Actividade
física’ é, neste contexto, uma expressão
imprópria e equivocada, chegada tardiamente e a más
horas, porquanto ela engloba tudo o que exige dispêndio de
energia.2 Nisto cabem tanto actividades laborais (cavar, lavrar,
jardinar, podar, assentar tijolos, pintar muros etc.), como movimentos
do quotidiano e actos desportivos (andar, correr, saltar, nadar,
jogar etc.), como ainda acções destinadas à
satisfação de elementares necessidades sexuais e biológicas
(fornicar, urinar, defecar e outros termos cuja inclusão
nesta lista a educação não consente) etc. Ora
não parece, nem é crível que os autores de
orientações académicas e de documentos legais
pretendam envolver-se, elaborar e impor normativos, prescrições
e sentenças em toda esta vasta panóplia de actividades.
‘Actividade física’
é, pois, um conceito vago, difuso e transversal, sem qualquer
relação de exclusividade ou de intimidade preferencial
com o desporto, tomado este tanto em sentido lato como em sentido
restrito; isto é, não se coaduna de modo claro com
o vasto campo de exercitação desportiva, lúdica
e corporal. É tudo e nada, logo é impreciso e inadequado
para o fim em vista e não vai além de um pretensiosismo
bacoco. Assim, por detrás da imprecisão e do acrescento
não distraído nem ingénuo da nova designação,
moram estigmas e complexos académicos que revelam mau relacionamento
com o desporto, uma compreensão deficiente do que este representa,
do sentido cultural, social, educativo e humano que ele encerra.
O país não carece de
‘actividade física’; precisa sim de fomentar
a actividade desportiva, de aumentar e melhorar a prática
do desporto, em toda a sua multiplicidade. É isto que o movimento
associativo (com o COP à cabeça) e as instituições
que cuidam séria e responsavelmente da educação
e do desporto do nosso país devem afirmar. Para que não
volte o tempo em que perdíamos por muitos e já era
uma alegria quando perdíamos por poucos. Não se lembram
do que sucedia, p. ex., no andebol, basquetebol e voleibol? Éramos
os bombos certos da festa, zurzidos de forma implacável e
sem apelo nem agravo. Não são preferíveis a
melhoria que hoje exibimos, as vitórias que vamos conseguindo?
Não sabe melhor ganhar do que perder?!
Na mesma linha de raciocínio,
os cidadãos não carecem de um corpo e de um estilo
de vida moldados pela ‘actividade física’; precisam
sim de acrescentar ao corpo do trabalho (seja ele predominantemente
manual e ‘físico’ ou mental e intelectual) e
à vida quotidiana outros corpos e dimensões enriquecedores
da existência; para adentrarem a porta da humanidade, precisam
de ser senhores de muitos corpos e de muitas vidas num só
corpo e numa só vida. O corpo ‘desportivo’ e
o estilo correspondente da vida fazem parte desse ideário.
4. O desporto instala
em conceitos e preceitos, princípios e ideais, deveres e
obrigações, ilusões e utopias. Implica metas
e compromissos, hábitos e rotinas de trabalho para lá
chegar. Coloca barreiras, desafios e dificuldades e convida a nossa
natureza a não se dar por satisfeita com o seu estatuto,
a suplantar-se e a obter carta de alforria, procurando alcandorar-se
a níveis para os quais não se apresenta como particularmente
predestinada. Nele aprendemos que não podemos descansar e
que o mérito e o sucesso sérios e honrados custam
entrega porfiada e suada, uma vez que o talento é raro, porquanto,
ao contrário do que consta no registo bíblico, Deus
não criou o homem conforme à Sua imagem e semelhança;
somente quando se distrai, em dia de aniversário, é
que faz uma criatura à Sua medida. O desporto é uma
opção pela dificuldade, em face da tentação
da facilidade. Socializa no trabalho em grupo e em equipa e leva
a partilhar anseios e projectos com os demais. Civiliza a conduta
corporal, ética e moral em relação a nós
e aos outros. E é também com o seu concurso, estímulo
e ideário que, parafraseando Richard Bach (autor do hino
à liberdade humana intitulado Fernão Capelo Gaivota),
“podemos sair da ignorância, podemos ser criaturas perfeitas,
inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender
a voar!” E é isto mesmo que eu vou tentar.
Se nos dermos a comparações
para o medir e avaliar, só aumentam as razões para
nele acreditar; a todas as depreciações ele consegue
ganhar. ‘Actividade física’ é accionismo
natural; desporto é acto cultural. Ela é imanência
da nossa condição; ele é prótese criada
pela civilização. Ela é ditada pelo peso da
excrescência; ele provém da noção de
insuficiência. Desporto é algo mais e além;
ela é algo menos e aquém. Nele moram a consciência
da falta de forças e capacidades e a vontade da sua criação
e exaltação; ela cinge à conformação,
limitação e resignação. Ele aponta a
lonjura e o cume da elevação; ela contenta-se com
o umbigo e em olhar o chão. Nele enfrenta-se o vento e as
marés; nela gasta-se o tempo e os pés. Ele quer fazer
do corpo uma encarnação do espírito e inteligência;
ela satisfaz-se em queimar gordura e aligeirar a indolência.
Ele é marco civilizacional; ela é moda ocasional.
Ele ocupa-se da formação
do carácter e do quanto este obriga; ela cuida da forma das
pernas e do volume da barriga. Ele é beleza, paixão
e encantamento; ela é penitência, obrigação
e sofrimento. Ela é remédio e necessidade; ele é
opção e exercício da liberdade. Ela pode diminuir
a obesidade; ele gera riso e habilidade. Ele assume o risco com
optimismo; ela segue a regra do conformismo. Ele visa o tecto ilimitado
e infinito; ela o gesto contido e restrito. Ele é comunicação,
partilha e comunhão; ela cumpre-se no isolamento e solidão.
Ele é impulso, orgasmo, êxtase e ousadia; ela é
medicamento, bula de calorias e sensaboria. Ele é euforia
e sublimação da vida; ela é expiação
da culpa assumida. Ela é comum ao animal; ele é próprio
do ser cultural.
[1] LBAFD - Lei de Bases da Actividade
Física e do Desporto.
[2] ‘Actividade física’ é definida por
Caspersen, Powell & Christenson (Symposium: Public health aspects
of physical activity and exercise, 1985, p.126), especialistas de
renome mundial, “como qualquer movimento produzido pelos músculos
esqueléticos que resulta em dispêndio energético
para além do metabolismo de repouso”. Somente isto
e nada mais; tudo e nada ao mesmo tempo. Fica assim claro quão
inapropriado é o uso daquela expressão numa lei destinada
a regular o sistema desportivo.
Jorge Bento |
Artigos de Investigação
[Research Papers]
Reprodutibilidade
e validade do questionário Baecke para avaliação
da atividade física habitual em adolescentes
Reproducibility and validity of the Baecke questionnaire
for assessing of the habitual physical activity in adolescents
Dartagnan P. Guedes, Cynthia C. Lopes, Joana E.R.P.
Guedes, Luiz C. Stanganelli
Feedback
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Self-controlled feedback and learning of a discrete motor ability
in the elderly
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Mariângela R. Afonso
Efeitos
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soccer players
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H.A. Folgado, P.F. Caixinha, J. Sampaio, V. Maçãs
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MABC: aplicabilidade da lista de checagem na região sudeste
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MABC test: check-list applicability in the southeast region
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Jane A.O. Silva, Luis E. Dantas, Maria T. Cattuzzo, Cinthya Walter,
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Physical Fitness and Physical Activity in Africa. State of the
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