Nota Editorial
Da conjuntura corporal e do ambiente obesogénico, relaxado e indolente
1. Tanto por boas como por más razões, as condições de
vida impõem-nos uma conjuntura corporal, ou seja, uma renovação
das atenções dedicadas ao corpo e ao seu carácter
instrumental. De resto sempre assim foi; a nossa vida e a nossa
identidade sempre foram corpóreas, o corpo sempre foi uma
anatomia do nosso destino. Mas talvez esta circunstância surja
agora muito mais evidente do que noutras eras.
Merleau-Ponty, entre outros pensadores
existencialistas, tinha alertado para isso nos anos 60 do século
passado, negando a consciência como pura espontaneidade desencarnada
e soberana no tocante à doação de significados
e afirmando a sua encarnação num corpo cognoscitivo
e reflexivo, dotado de interioridade e sentido e capaz de se relacionar
com as coisas como corpos sensíveis que são. Com isso
Merleau-Ponty retira o corpo da coisificação e institui-o
em sede de símbolos e significados, porque ele é não
num mundo natural, mas sim num universo cultural e axiológico.
É um artefacto sócio-cultural; está para além
do protocorpo natural e biológico. E assim incorpora o sentido
estruturante da existência humana e da qualidade de vida imanente.
Isto é, a vida é uma performance corporal, nós
somos o nosso corpo, ele é medida e expressão do nosso
ser; ambos os lados estão interrelacionados. 1
Nos nossos dias, Michel Serres assinala
que a aparência e a essência saem de uma mesma fonte
e nada é tão profundo e abrangente como a cosmética
que aplicamos na nossa pele ou como a forma da nossa apresentação
e acção. Na superfície da nossa pele e comportamento
torna-se visível a invisível mas verdadeira identidade,
mostram-se a sensibilidade e consciência, as inclinações
e tendências, as orientações e sentimentos que
temos e aqueles que nos faltam. A fachada corporal e comportamental
revela a nossa autêntica identidade e sensibilidade, o modo
de pensarmos, idealizarmos e julgarmos. 2 O mesmo é dizer
que, na superfície e visibilidade das nossas atitudes, hábitos
e rotinas, das nossas acções e reacções,
aflora pouco a pouco, traço a traço aquilo que somos
e, muitas vezes, queremos iludir.
Goethe já havia sugerido o mesmo
ao afirmar que atrás do visível não há
nada; no visível e na superfície é que está
tudo. Que há uma relação íntima entre
a obscuridade das nossas entranhas e a nossa visibilidade; que as
primeiras não são mais importantes do que aquilo que
é visível no corpo. A metamorfose e o crescimento
terão forças próprias, mas são manifestas
à superfície.
Também Carlos Drummond de Andrade
navegou nas mesmas águas com esta exclamação:
Salve, meu corpo, minha estrutura de viver / e de cumprir os ritos
do existir! 3
Esta função do corpo
é bem evidenciada pelos obesos, mostrando de modo dramático
que a obesidade é uma doença sinistra, porquanto as
suas implicações vão além do plano estritamente
biológico. Como se sabe, pertencemos à sociedade da
imagem e aparência e vivemos numa época em que a beleza,
juventude, perfeição e aptidão corporais são
ambições generalizadas e são definidas por
um aspecto padronizado pelo culto da magreza. Ora a obesidade não
se inscreve nesta matriz, nem é fácil de esconder
ou disfarçar. Altera a imagem dos atingidos e causa marginalidade,
com incidências negativas no plano psicológico, afectivo
e social. Mais ainda, torna-se um estigma que aponta os obesos como
pessoas fracas e indolentes, desprovidas de vontade e capacidade
de controlo. Isto é, num tempo em que a conjuntura corporal
é sobremaneira marcada pela estética e pelo culto
da imagem, não é fácil aos obesos resistir
aos olhares dos outros. A doença torna-se a nova identidade
e a única companhia; isolam-se e evitam o contacto com as
pessoas. Como resultado surge o desencanto em relação
à vida.
2. A actual conjuntura
corporal tem razões e expressões diferentes das de
outras épocas. À medida que a civilização
desenvolve a ciência e cria tecnologia, torna-se possível
substituir o gado humano por máquinas. E quanto mais estas
se aperfeiçoam e generalizam, mais aumenta a dimensão
mental e intelectual das distintas actividades, o que redunda em
afisicidade, em inactividade física e na desconsideração
do corpo na maior parte das tarefas laborais e mesmo das acções
quotidianas. 4
Daqui resultam consequências
iniludíveis para os estilos e formas de vida, para a saúde,
para a civilização, para a condição
humana e para a identidade das pessoas e até da nossa espécie.
Esta é uma evolução
objectiva, que apresenta motivos óbvios tanto para justificado
contentamento como para reflexões ponderosas. Entre estas
merece particular atenção o facto de estarmos a caminhar
em todo o mundo em direcção à obesidade. Ela
atinge não só os adultos e idosos, mas penetra cada
vez mais na população infantil, afectando já
muitos milhões de crianças com menos de 5 anos de
idade.
O ambiente obesogénico, o relaxamento,
a indolência e a preguiça alastram por toda a parte,
constituindo uma séria ameaça tanto para a saúde
como sobretudo para a realização de valores educativos
e sociais.
A gravidade do problema encaminha para
a activação desportiva, como se esta fosse uma tábua
de salvação, uma prótese para uma infinitude
de insuficiências e deficiências que nos limitam e apoucam.
Uma réstia de esperança! Para o corpo que temos e
somos, “sem cuja satisfação – lembra Fernando
Savater – não há bem-estar nem bem viver que
resistam”. 5 O mesmo é dizer que a aptidão desportiva
e a condição corporal cumprem uma função
instrumental; ‘condicionam’, prestam serviços
e constituem pressuposto para a qualificação das restantes
dimensões ou ‘condições’ da pessoa.
O que é sobejamente ilustrado no caso dos idosos; é
neles que melhor se vê como, na nossa sociedade da concorrência
e rendimento, a ‘condição física’
serve as outras condições, como cumpre uma relevante
função humanista, contribuindo para que a pessoa não
morra antes do tempo no conceito de quem a rodeia.
3. A inactividade
corporal e mental, hoje reinante, convida portanto a aumentar e
melhorar o índice do desempenho corporal e da condição
física das pessoas. Essencialmente porque o ambiente obesogénico
não pode ser subestimado; ao invés, exige que olhemos
através e para além dele. A situação
é tão alarmante que já há mais indivíduos
com excesso de peso do que com fome. Ou seja, aquilo que uns comem
a mais e lhes é inteiramente prejudicial dava e sobrava para
matar a fome no mundo, se houvesse suficiente sensibilidade e decência.
Mas não há, nem se descortina que elas possam surgir.
Fazendo fé no que atrás
ficou exposto e na constatação de Fernando Pessoa,
de que o corpo é a pessoa de fora que dá a imagem
da pessoa de dentro, vivemos num mundo anafado e afogado em obesidade
e adiposidade, em gordura e banha, em sebo e unto, em relaxamento,
desídia, preguiça e indolência. Isto é,
o ambiente obesogénico afecta em igual medida por fora e
por dentro; configura não apenas a fachada corporal, mas
repercute-se de maneira indelével nos sentimentos, desejos
e atitudes, nas posturas, comportamentos e expressões, nos
olhos, no coração e na alma. Por isso o mundo exala
cada vez mais um cheiro nauseabundo, tornando-se insuportável
para viver. Ora é neste mundo que crescem as crianças
e jovens. É mesmo assim que os queremos educar? É
nesse mundo e ambiente relaxados, ditados pela ‘razão’
indolente que devem crescer?
Para combater este panorama não
se aconselha uma deriva de natureza higienista ou sanitária,
por mais aliciantes, encantatórios e refulgentes que pareçam
os propósitos. Não precisamos de abandonar a matriz
antropológica e axiológica que o desporto encerra.
Do que carecemos é de mais labor pedagógico e não
tanto de ‘activismo físico’, de mais moral em
acção e não tanto de fisiologia, de mais reflexão
filosófica e não tanto de prescrições
médicas.
Nesta nossa era de crescente afisicidade,
de ética indolor e de crepúsculo do dever –
tão bem assinaladas por Hannah Arendt 6 e Lipovetsky 7 –
agudiza-se a necessidade de cultivar qualidades, princípios
e atitudes que, sendo centrais na condição de rendimento
desportivo e corporal, são marcas fundamentais do carácter
e do modelo de pessoa que tanto enaltecemos e valorizamos. A partir
do momento em que os humanos, por terem comido a saborosa maçã
ou terem aberto a Caixa de Pandora e terem assim espalhado no mundo
os ventos e sementes da desgraça, foram expulsos do paraíso
e se viram condenados a comer o pão ganho com o suor do rosto,
a civilização e a cultura ocidentais instituíram
um modelo de Homem e de vida, inteira e fidedignamente configurado
no desporto e nas exigências e ideais que ele comporta.
Assim, enquanto não renunciarmos
ao modelo de Homem que tem guiado a civilização, desde
o início até aos nossos dias, o desporto continuará
a ser um investimento no progresso corporal, gestual e comportamental
das pessoas. Ele desafia-nos a tomarmos a gnose e a técnica,
a ética e a estética dos nossos actos como pontes
para a liberdade. Porque nós somos livres não pela
boca falante, mas sim pela mistura que o corpo sabe realizar com
os sentidos, ou seja, pelo saber, pelo querer e fazer consequentes
e não pelo crer e dizer negligentes. Somos livres pela palavra
convincente e pela acção correspondente. Por fazermos
convergir o eixo da visão e o eixo das coisas e acções.
No desporto participamos na construção
de pessoas e identidades cujo Ego é sempre um espírito
incarnado, uma tatuagem corpórea da alma. Ocupamo-nos da
apropriação e irradiação de mitos, símbolos
e ideais através de desempenhos corporais. Da instalação
em conceitos e preceitos, deveres e obrigações, ilusões
e utopias. Da adesão a uma cultura de metas e compromissos,
de dificuldades e desafios, de hábitos e rotinas de trabalho
para lá chegar. E assim procuramos anular as fronteiras entre
a alma e o mundo exterior; lavramos no esforço severo, incansável
e sistemático de projectar a nossa natureza, nomeadamente
o corpo, contra si própria, para além e acima de si
mesma, convidando-a a não se dar por satisfeita com o seu
estatuto, a suplantar-se e a chegar-se a níveis para os quais
não se apresenta como particularmente predestinada. Por isso
renunciar ou afrouxar na observância dos seus princípios
e valores equivale a empobrecer os cidadãos nas dimensões
técnicas e motoras, éticas e estéticas, cívicas
e morais e a favorecer a proliferação do laxismo e
relativismo, do clima relaxado e indolente.8
Em suma, o sedentarismo, a inactividade
física e as suas sequelas combatem-se não com um qualquer
activismo higienista que se esgota em si mesmo, mas sim com uma
actividade chamada ‘desporto’ que, por ter matriz cultural,
agrega uma panóplia de valores.
4. Fernando Savater
convida a situar na escola “o campo de batalha oportuno para
prevenir males que mais tarde serão muito difíceis
de erradicar.” A sociedade “deve reclamar a iniciativa
e converter a escola em ‘tema de moda’ quando chega
a hora de executar programas colectivos de futuro… Caso contrário,
ninguém poderá queixar-se e apenas lhe resta resignar-se
ao pior ou falar no vazio.” 9
Também neste caso da inactividade,
do ambiente obesogénico, relaxado e indolente, da ética
indolor, do crepúsculo do dever e do eclipse da vontade é
preciso situar na escola a principal frente de batalha, embora convidando
a participar nela outros sectores. Ao desporto pertence um papel
cimeiro neste empreendimento, tendo em atenção que
os actos desportivos somente são físicos na aparência;
na sua essência são sempre decisões e exercícios
da vontade. Ademais nele não se faz o que se quer, mas quer-se
o que se faz.
1 Merleau-Ponty (1964): Fenomenologie de la
Perception. Paris: Gallimard.
2 Serres, Michel (2001): OS CINCO sentidos – Filosofia dos
corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
3 de Andrade, Carlos Drummond (1996): FAREWELL. Rio de Janeiro:
Record.
4 de Masi, Domenico (2000): O Ócio Criativo. Rio de Janeiro:
GMT Editores Ltda.
5 Savater, Fernando (1991): ÉTICA PARA UM JOVEM. Editorial
Presença, Lisboa.
6 Arendt, Hannah (2001): A CONDIÇÃO HUMANA. Relógio
D’Água Editores, Lisboa.
7 Lipovetsky, Gilles (1994): O crepúsculo do dever: a ética
indolor dos novos tempos democráticos. Publicações
Dom Quixote, Lisboa.
8 A renúncia às exigências do desporto ajuda
ainda a minar o pilar da emancipação dos indivíduos,
constituído por três lógicas ou linhas de autonomia
racional, particularmente notórias e centrais na prática
desportiva, a saber: a racionalidade expressiva das artes, a racionalidade
cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e
a racionalidade prática da ética e do direito. (Boaventura
dos Santos: Crítica da razão indolente. Contra o desperdício
da experiência. Cortez Editores, São Paulo, 2000).
9 Savater, Fernando (1997): O VALOR DE EDUCAR. Editorial Presença,
Lisboa.
Jorge Bento |
Artigos de Investigação
[Research Papers]
Semelhança
fraterna nos níveis de aptidão física
Sibling similarities in physical fitness
Catarina Vasques, Vítor Lopes, André Seabra, Rogério
Fermino, José António Ribeiro Maia
Avaliação
do padrão de sono, atividade física e funções
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Assessment of sleep patterns, physical activity and cognitive
functions in scholar adolescents
Rita A. Boscolo, Isabel C. Sacco, Hanna K. Antunes, Marco Túlio
de Mello, Sérgio Tufik
A
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Ana Lúcia dos Santos, António C. Simões
O
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Cleverton de Souza, Lúcio Ferreira, Maria T. Catuzzo, Umberto
C. Corrêa
O
efeito da aplicação de ligaduras funcionais no padrão
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The ankle taping effects in gait and postural control in hemiplegic
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Análise
de variáveis cinemáticas da corrida de jovens velocistas
Running kinematics analysis of young sprinters
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Júnior, Carlos B. Mota
Avaliação,
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Effects of a combined training of strength and endurance on
body components of women on perimenopause stage
Mateus Rossato, Maria A. Binotto, Maria A. Roth, Haury Temp, Felipe
P. Carpes, Jose L. Alonso, Airton J. Rombaldi
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Effects of a low volume and intensity aerobic training program
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Uma
roda de rua: notas etnográficas da roda de capoeira de Caxias
Street capoeira: fieldnotes of the “Caxias roda de capoeira”
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